domingo, 11 de maio de 2008

é TECIDO nº 3

Nº 003
Agosto/ 2005
Cariacica/ Vitória ES – Brasil

“Eu sou contra cotas para negros”

Por H. Lima
Estudante do curso de Geografia da UFES


A frase acima foi dita por um professor, de traços físicos visivelmente africanos, dentro da sala de aula de uma instituição pública de ensino. No seu rosto era nítida a expressão de orgulho em dizer tal frase. Mas o que é o sistema de cotas?, para quem ele deve ser direcionado?
Discutir o sistema de cotas para as universidades públicas brasileiras não é como debater a escalação ou as jogadas da seleção brasileira de futebol. Uma parcela do povo brasileiro possui o hábito de formular suas opiniões sempre embasados na mídia gorda, essa que abriga sob suas asas o telejornal, que usa terno italiano e batom comprado na Daslu, os jornalões e as revistonas semanais. É como aquele indivíduo que assiste um comentarista esportivo e lê algumas linhas do caderno de esportes de um jornal descendo a lenha em algum treinador ou time e imediatamente passa a reproduzir para seus amigos a “sua” opinião em relação a esse ou aquele grupo esportivo. O cara não se aprofunda no assunto, não busca conhecimento por meio da leitura e mau assiste os jogos do campeonato, mas se considera um perito no assunto.
Com as cotas acontece algo semelhante, algumas pessoas são contra, mas não sabem o porque de sua posição. Existem aquelas que são favoráveis e também não possuem argumentos necessários para defender sua opinião, as vezes simplesmente concordam para não contrariar seu grupo de amigos. Isso ocorre devido a falta de informação, o que impossibilita a compreensão do passado e do presente.
Os registros históricos – aqueles que escaparam da estratégia de Rui Barbosa – deixam muito claro o alto número de pretos capturados na África e trazidos a força para o Brasil.
Aqui sob castigos extremos os africanos, em sua maioria bantos e sudaneses, eram utilizados como instrumentos para todo tipo de trabalho e prazeres sexuais para os senhores de engenho e seus filhos. Estima-se em 3,5 a 4 milhões a cifra de pretos introduzidos no país.

A Lei de Terras e a Lei Áurea - a fixação da imobilidade social

O Bill Aberdeen, decretado pela Inglaterra – na época tida como potência mundial – em agosto de 1845, afirmava que qualquer navio tumbeiro que fosse identificado em águas internacionais seria apreendido. O Bill Aberdeen era a maquiagem perfeita do interesse inglês em fomentar no Brasil um mercado para consumir os produtos oriundos da primeira fase da Revolução Industrial, e trabalhador sem remuneração, com era o caso dos escravos, não consome. Começa-se a perceber que a extinção do regime escravista seria inevitável.
Quando falou-se de extinção da escravidão, os Senhores de Engenho começaram a pressionar o império, já que os pretos eram as “ferramentas” essenciais para o funcionamento do engenho. Desta forma caso houvesse a libertação, os Senhores permitiriam a saída dos escravos das fazendas desde que fossem indenizados por perdas materiais.
Em 1850 é decretada a lei nº 601, esta centralizava nas mãos do Estado todas as terras que não possuíssem título legitimo.
O parágrafo 2º da Lei de Terras que refere-se a áreas não ocupadas diz o seguinte:

“§ 2º - As que não se acharem no domínio de particular por qualquer título legítimo, não forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral;”

A Lei de terras resolveu as principais questões que poderiam futuramente preocupar o Estado e os Senhores de Engenho. Dentre elas estava a ocupação de terras por trabalhadores europeus, que neste momento começam a entrar no país para trabalhar nas lavouras, já que a mão-de-obra escrava estava em processo de escassez devido a proibição inglesa. Também impediria que os pretos que futuramente fossem libertos ocupassem terras para morar, produzir e comercializar. Dessa forma, a elite agrária assegura o impedimento da mobilidade social, seja para ex-escravos, seja para europeus que nesse momento também são escravos.
No caso dos europeus, devido a denúncias e pressões dos governos de seus países sobre o Estado brasileiro algumas famílias receberão tratamento diferente e conseguirão ocupar terras, produzir, fazer comércio e ganhar dinheiro.
No ano de 1850 também é decretada a Lei Euzébio de Queiroz proibindo o tráfico negreiro em território brasileiro. Porém, a entrada de escravos no país continua e a Lei Nabuco de Araújo a complementa em 1854. Mesmo assim o tráfico interno continua intensamente, principalmente do nordeste para a atual região sudeste devido a descoberta do ouro de aluvião em Minas Gerais.
Em 1888 é decretada a “libertação” dos escravos por meio da lei nº 3.353 que diz o seguinte:

“A PRINCESA IMPERIAL Regente em Nome de Sua Majestade o Imperador o Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os súditos do IMPÉRIO que a Assembléia Geral Decretou e Ela sancionou a Lei seguinte:
Art. 1º - É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.
Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário.Manda portanto a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
O Secretário de Estado dos Negócios d'Agricultura, Comércio e Obras Públicas e Interino dos Negócios Estrangeiros Bacharel Rodrigo Augusto da Silva do Conselho de Sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.
Dado no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de Maio de 1888 - 67º da Independência e do Império.
Carta de Lei, pela qual Vossa Alteza Imperial manda executar o Decreto da Assembléia Geral, que Houve por bem sancionar declarando extinta a escravidão no Brasil, como nela se declara.
Para Vossa Alteza Imperial ver.”

Em uma lei com apenas dois artigos é extinta a escravidão no Brasil. Ignoram quase quatro séculos de regime escravista. O Estado brasileiro abandona à própria sorte milhões de homens e mulheres, excluindo-os do acesso a terra, educação e moradia. As conseqüências são visíveis ainda nos dias atuais quando percebe-se uma maioria de pretos analfabetos ou semi-analfabetos ocupando barracos em favelas, lotando cadeias, executando serviços considerados subalternos e engrossando a massa de desempregados ou subempregados deste país.
Não são raros os casos de pretos que após algum tempo depois de serem libertos pediam aos Senhores que os aceitasse novamente no engenho, faziam isso por força da fome e da falta de teto. Outros continuaram perambulando pelas ruas, não restando como outro meio de sobrevivência a esmola e o furto de alimentos.
Em momento algum na história, pode-se afirmar que os pretos eram pacíficos à escravidão. Muitos deles suicidaram-se para não servir aos senhores, outros fugiram e montaram quilombos como o de Palmares e o Campo Grande, várias mulheres escravas mataram seus filhos ainda dentro de seu ventre, agindo assim evitavam o nascimento de mais um homem ou mulher que futuramente seria submetido a castigos e trabalhos forçados.

As Cotas

O modelo do sistema de cotas em discussão atualmente tem como objetivo principal incluir afrodescendentes no ensino superior, reservando-lhes um percentual de 20% ,ou mais, das vagas existentes nas entidades públicas de ensino superior, haja vista que atualmente percebe-se uma maioria expressiva de indivíduos ricos e de pele branca estudando nas universidades públicas brasileiras.
É preciso entender que quando fala-se em reservar 20% das vagas, em momento algum haverá privilégio de alguns em detrimento de outros, pois aqueles que ocuparem as vagas reservadas também terão que estudar muito e fazer as provas do vestibular.
Os grupos contrários ao sistema de cotas tentam confundir o debate insinuando que os ocupantes das vagas reservadas serão pessoas sem nenhuma preparação, como se 3 ou 5 horas de provas esclarecesse a capacidade de alguém.
Outros falam da reafirmação do racismo ou da capacidade que todos tem para ser aprovado em um vestibular e tem até aqueles que defendem que as melhorias tem que ser feitas ,agora, no ensino básico e a equiparação nas universidades virá futuramente. De fato o ensino fundamental e médio necessitam urgentemente de organização e mais investimentos , mas, e quanto aos que já concluíram o ensino médio?
Esses e outros argumentos são disseminados em meio a sociedade pelos abastados acostumados a usufruir da força de trabalho de brasileiros e brasileiras sempre pagando-lhes salários minguados, seja o pedreiro e seu ajudante na construção de prédios luxuosos, seja a empregada doméstica que além de limpar, lavar e cozinhar as vezes e alvo das manhas e brincadeiras de mau gosto do filinho de papai.
É muito conveniente vomitar que é contrário às cotas quando não se mora em favela, não anda em ônibus lotado, não é visado pela polícia como marginal, não ganha salário-mínimo, não estuda em colégio com cadeira quebrada e sala sem porta com quadro improvisado.
A implantação do sistema de cotas não é a solução imediata para as disparidades socioeconômicas brasileiras, mas certamente é o início de uma transformação positiva no que se refere a política, a sociedade, a economia, a ideologia e o respeito às diferenças dentro deste diversificado país, é por isso que os endinheirados sentem temor e utilizam-se de métodos espúrios que induzem uma parcela da população a posicionar-se contra.


Um dos argumentos mais utilizados pelos que são contrários às cotas é dizer que todos têm a mesma capacidade de passar em uma prova de vestibular, e é verdade, desde que todos tenham as mesmas oportunidades para se prepararem. Os escravos foram privados das oportunidades e o mesmo ocorreu com seus descendentes, após 358 anos de escravidão foram libertados por meio de um lei composta por dois artigos apenas.

Para quem são as cotas?

Durante 358 anos o regime escravista perdurou no Brasil, dessa forma é inegável que uma enorme massa de pretos entrou no país, em sua maioria bantos e sudaneses.
O sistema de cotas é voltado para os afrodescendentes, porém é necessário cautela para que não seja cometido o equívoco de direcioná-lo apenas à indivíduos que apresentem traços africanos, pois, devido a relações sexuais entre negros, europeus e índios surgiram homens e mulheres que apresentam características meio indígenas, meio negras e meio européias.
Não é raro encontrar pessoas com olhos azuis ou verdes com cabelos claros e pela branca morando em favelas como Vila Prudêncio, Flexal, Nova Rosa da Penha entre outras. As cotas devem ser voltadas também para estas pessoas, algumas delas – as que conseguem – trabalham durante o dia e durante a noite enfrentam uma sala de aula de curso pré-vestibular.
Aqueles que entrarem na universidade por meio do sistema de cotas devem receber do governo auxílio financeiro decente para custear despesas com alimentação, transporte e material didático. Implantar o sistema de cotas para simplesmente alterar a realidade estatística e não propiciar o seu desenvolvimento, seria como decretar a Lei Áurea do século XXI.

A rejeição às cotas, o Prouni, um latrocínio

Com o objetivo de desgastar as discussões sobre o sistema de cotas nas universidades públicas e aumentar o número de brasileiros cursando nível superior, o governo federal por meio do Ministério da Educação - MEC em conluio com a elite brasileira, lança o Programa Universidade para Todos – PROUNI. Através deste os alunos que são selecionados recebem bolsas integrais ou parciais para estudarem em entidades de ensino privado.
Os empresários que oferecem vagas em suas faculdades recebem em troca a isenção de pagamento do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), da Contribuição Social sobre Lucro
Líquido (CSSL), da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social ( COFINS) e da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS), ou seja, ganham uma montanha de dinheiro.
Já existem casos de pessoas que foram selecionadas pelo PROUNI, começaram a estudar e desistiram do curso devido ao alto custo do material didático. Mas para o governo o que importa é o número de alunos que entraram, pois estes aumentam a estatística da educação no país. Quanto aos que foram forçados a desistir, estes não têm nenhuma importância, ou seja, já fizeram sua parte.
Comparado com outros países da América Latina o Brasil possui um quantitativo vergonhoso de pessoas estudando em universidades, por isso criou-se a política imediata do PROUNI.

Fugir da discussão do sistema de cotas é no mínimo um tiro no pé, pois muitos estudantes que moram em favelas e rejeitam o determinismo social chegam a não passar no vestibular por falta de 0,5 ou 1,0 ponto.
A inexistência de uma medida que corrija esta falha social pode provocar a aceitação do determinismo social e transformar o futuro médico, engenheiro, geógrafo ou historiador em um seqüestrador que entra no carro importado do abastado quando este estiver parado no semáforo e logo após abre sua cabeça com uma pistola 9mm ou 380 para roubar seu veículo e depois será apenas flores em 02 de novembro e movimento paz pela paz.A propósito o professor mencionado no início do texto vende aulas de história do Brasil para entidades de ensino público e privado.

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